10 janeiro 2011

O raciocínio médico ou Preces

O trabalho médico tem muito de detectivesco.
Repare-se na história clínica, por exemplo. Consiste, em parte, na execução de um questionário, metódico e sistemático: o que dói, quando, como e onde. Mas não se fica por aqui, claro. Cada sintoma é discutido até ao mais ínfimo pormenor. A dor, por exemplo, não se limita a existir ou não; não basta saber onde. É preciso quantificar a intensidade, saber o que desperta a dor, o que a alivia, há quanto tempo dura, que tipo de dor é. E, tal como os detectives, os médicos também se deparam com respostas falsas, umas mais inocentes do que outras. Inocentes, sim.
Atente-se no exemplo clássico da velhinha de 200 anos, a quem se pergunta se tem outras doenças, se faz medicação em casa, se já alguma vez tinha estado internada. Não, não e não, responde-nos, categórica. Mas não podemos ficar por aqui. E, esmiuçando-se a questão, descobre-se que já fez 50 cirurgias, tem Hipertensão e Diabetes desde tempos jurássicos e, mais ainda, quando perguntamos se toma comprimidos para a tensão, responde com ar ofendido "Claro que sim!", agora não havia de fazer comprimidos para a tensão. Pffff!
Há também, claro, mentiras menos inocentes, como o doente que sofre de alcoolismo crónico e que jura a pés juntos não tocar em álcool há que tempos, Srª Drª. Tal como o detective, o médico tem que saber quais os resultados analíticos que o desmentem e que, portanto, constituem prova do consumo.

Ora eu não sei de que armas se munem os detectives para fazerem o seu raciocínio, em que teorias baseiam as hipóteses de culpados, mas em Medicina este raciocício é um constante desafio.
Há, por um lado, o conhecimento básico. Que, ao contrário do que se julga, não é feito simplesmente à base de empinanço; exige, sim, um raciocínio lógico. A nível molecular, a agressão x desencadeia a resposta y, com produção da molécula xpto, que por sua vez actua nos receptores tal e coisa, que formam os mensageiros coisa e tal, que por sua vez estimulam a produção de abcd, que por este e aquele e aqueloutro mecanismo explica o facto de o doente ter, sei lá, taquicardia. Este tipo de coisas tem que se perceber e, mesmo que não andem no bolso de trás dos nossos neurónios sempre, acessíveis por inteiro como convinha, são resgatadas para a memória de trabalho com uma facilidade relativa.
Depois, claro, há coisas que é mesmo preciso empinar. Pega-se nos livros e estudam-se os capítulos de cardio sob taquicardia intensa, depois hiperventilam-se os pneumo, faz-se uma perninha à hematologia, acendem-se as velas ao pegar em nefro, puxam-se os cabelos com equilíbrios hidro-electrolíticos, fazem-se promessas de o dia seguinte ser o eleito para arrumar de vez o ecg e por aí fora. Este aspecto da coisa é, por sua vez, aparentado com o big bang: começa de uma coisa pequenina, no caso a célula, descorre-se o novelo em multiplicações, travessas, caminhos alternativos, becos sem saída e outras que tais e, vai-se a ver, desembocamos numa coisa tentacular, cuja expansão é claramente infinita.

Posto isto, nada serve quando se chega à frente do doente e é preciso saber o que fazer e depressa. Não há tempo para abrir o arquivo, aceder à pasta cardiologia, sub-pasta taquicardia, rever a lista empinada das causas, pegar nos esquemas de raciocínio e, com eles, perceber a coisa. Não. É preciso actuar logo, de forma instantânea, quase tão automática como conduzir, mas sempre sem deixar de pensar no que se está a fazer e porquê.
Ora para o conseguir, é preciso ser Sherlock Holmes (Agatha Christie para as senhoras, sff), sim, mas também, sei lá, um pouco de Renoir e de Dali, porque às vezes é mesmo preciso arte e, aqui é que a porca torce o rabo, experiência.
Experiência para perceber como lidar com as situações, para pensar sobre elas com base em todos os conhecimentos que foram adquiridos ao longo do tempo, substanciar os raciocínios, tornar o tal bolso de trás do neurónios ele próprio infinito para que caiba lá  o que nos faz falta de imediato e que vai-se a ver é quase tudo e, por fim, dar cabo das airosas, arrumadinhas e estanques pastas e sub-pastas e relaciona-las num circuito enorme, cheio de setas, causas e consequências que, desconfio, chegaria daqui à Lua - eu diria Plutão, mas vou-me ficar pelo optimismo.
E esta última parte é sem dúvida o maior desafio; a parte mais difícil e mais suada da coisa. E, pese embora o facto de as outras terem pois claro as suas lacunas, que ninguém é perfeito, é esse o meu trabalho agora. O tal circuito enorme e infinito, que isto das pastas já não chega.

Medo.

Por isso Deus, Ála, sortes, fados, destinos, dêem-me por favor a paz de que preciso para me concentrar, um tanto ou quanto de genialidade para conseguir e, para não variar, o prémio do euro-milhões pode continuar a ir para os outros, porque com dinheiro e força nas pernas há sempre a hipótese de eu fugir.

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