Saíu no Expresso de ontem um
artigo de opinião, com o nome "Os tentáculos da Ordem dos médicos" que, para não variar, faz os possíveis por
descredibilizar a imagem da classe profissional a que, espero, em breve vou pertencer.
Não vou discutir a questão dos genéricos, uma vez que já vários profissionais me asseguraram que, apesar de a substância activa ser a mesma, alguns - poucos - genéricos têm menos eficácia/ mais efeitos adversos. Outros que não confiam na marca. Outros dizem que não há diferenças. Sinto, por isso, não ter experiência qb para comentar a qualidade dos genéricos em Portugal, mas
há factos inegáveis:
- Não há um genérico, há muitos. Logo, ainda que a preço mais baixo,
as características do negócio para as farmacêuticas são exactamente as mesmas. Basta uma breve pesquisa no site do Infarmed,
aqui - eu pesquisei a Sinvastatina, um fármaco usado em casos de hipercolesterolémia. São 11 páginas de resultados, sendo
a maioria dos fármacos colocados em quadros a roxo - o que indica que se trata do genérico. Fazendo uma restrição dos termos de pesquisa (usei como Forma Farmacêutica: comprimido revestido; Dosagem 20 mg, Embalagem de 60 unidades), é fácil perceber que, além de se manter o franco domínio do roxo,
o Preço para o Utente dos genéricos varia dos 0,74 aos 8,50 euros - reforço que se trata do
mesmo composto activo, na mesma dose, em embalagens com o mesmo número de unidades. Por aqui se percebe que, o facto de o médico não trancar a receita, não implica que o doente compre efectivamente o fármaco mais barato.
Porque é que não há um concurso público para a existência de um só genérico?
- Já testemunhei situações nas quais é prescrito a um doente um genérico x, da marca y (o mais barato, ou um dos mais baratos), sendo que o doente volta algum tempo depois dizendo que
a farmácia não tem e não pode mandar vir. E para isso dão as explicações mais sórdidas - num dos casos, o medicamento, a ser adquirido na zona da Grande Lisboa, teria de vir de Trás-os-Montes.
Ou seja, e adaptando a frase do artigo que dá mote a este texto, a farmácia tem o genérico de determinado laboratório e não de outro. Porque seria?
- É público, como podem confirmar
nesta notícia do DN, que
as farmácias recebem bónus com alguns genéricos. Na notícia fala-se de promoções na ordem dos "compre 50, pague 100" -
sem obrigatoriedade de desconto aos utentes. Residirá aqui a explicação para os genéricos disponíveis e para os que não se podem mandar vir? Mais ainda,
num País em que uma boa parte da população não consegue pagar os medicamentos, porque não usar esses bónus para que quem realmente necessite possa beneficiar dos mesmos a custo zero? Será que é porque não dá lucro?
Sobre as
vagas em Medicina e a inexistência de um curso nas Universidades Privadas, nem vou falar, esse já foi assunto de um
outro post. Peço apenas que,
caso o autor do texto tenha o azar de um dia precisar de ser internado num hospital e lhe toque um universitário,
tenha a bondade de responder de forma correcta e consistente ao interminável questionário inerente à elaboração de uma história clínica que os alunos, em grupos de 5 e 7, lhe farão a um ritmo de 2 vezes/ dia. Agradeço também desenvoltura para ser visto e palpado dos pés à cabeça, partes pudendas incluídas, o mesmo número de vezes.
Já o comentário de que,
quem não teve nota para entrar em Medicina, deveria processar judicialmente o Estado, tem todo o meu apoio, desde que o mesmo seja feito para advogados, arquitectos, veterinários, dentistas, biólogos, filósofos, etc. Onde é que já se viu, ter que lutar, estudar à brava e deixar de lado tanta coisa que, na juventude, era suposto poder viver e experienciar? Aliás,
o ideal seria mesmo a existência de passagens administrativas até ao 12º ano e entrada automática para todos os que declarassem sem fazer figas que sentem ter vocação para a área. Só assim seria possível separar o trigo do joio e acabar com estes médicos corporativos (sic), que estudam durante 6 + 1 + 4 anos no mínimo.
Sobre os enfermeiros poderem prescrever, deixem-me que vos diga o seguinte:
- Há, sem qualquer dúvida,
enfermeiros nos serviços que sabem mais do que eu. Têm experiência e já sabem qual o medicamento a dar numa determinada situação. Se sabem o porquê da escolha, os efeitos adversos possíveis e interacções, sou franca, desconheço.
-
Como aluno finalista do curso de Medicina, sou a 1ª a admitir que não sei fazer prescrições em todas as situações.
Se calhar é por isso que a Ordem dos Médicos, aquela dos tentáculos, só me deixa prescrever 2 anos depois de estar inscrita.
- Ao fim desses dois anos, espero ter prática qb para que todo o conhecimento teórico que adquiri ao longo da licenciatura e que hei-de adquirir posteriormente façam sentido e ganhem corpo. Mas tenho a certeza que, mesmo nessa altura, hei-de ir a correr para os assistentes a tirar dúvidas em alguns casos.
- Se acham que os enfermeiros, com 4 anos de curso e apenas uma cadeira semestral de Farmacologia podem prescrever, pois que o façam se tiverem coragem para isso.
Eu cá, quase ao fim de 6 anos, não digo a ninguém para tomar uma aspirina para a dor de cabeça, porque fico logo numa ansiedade extrema a pensar e se tem asma?/ e se tem úlcera e não me disse?/ etc.
- Os cursos de Medicina e Enfermagem são distintos por algum motivo. Cada macaco no seu galho
. Eu não sei, nem pretendo saber, fazer o trabalho fantástico que muitos enfermeiros fazem. Não percebo porque é que há-de ser estranho eles não saberem fazer o meu.
Por fim, este artigo tem, temo, o mérito de reflectir e muito a opinião de muita gente.
Está tudo a esfregar as mãos de contente com as notícias de desemprego na classe médica, "ai é bem feita, há para todos, não havia para eles, queres ver! Acabou-se-lhes o tacho!" É o espírito Tuga: se eu estou mal, é bem feito que os outros também estejam; ninguém pensa que haver desemprego é mau e ponto final e que o facto de ser transversal a várias habilitações profissionais só mostra o tão mal que estamos. Mas depois, quando faz falta, é um ver se te avias de Ai Sr Dr, de querer o médico disponível, de sorriso nos lábios e sem tempos de espera a toda a hora, de vénias, se for preciso.
Na melhor das hipóteses, os médicos são como os jogadores da selecção: passam de bestas a bestiais num instante. E digo na melhor das hipóteses porque isso é quando corre bem e é dado o crédito ao médico. Na maior parte das vezes é Graça a Deus.
Já o desgraçado que teve o azar de estar de serviço quando deu entrada uma vítima grave de atropelamento, há-de ser sempre o incompetente que lhe deu dores nos joelhos e nas cruzes para o resto da vida - porque o condutor embriagado que atropelou a vítima não tem culpa, claro.
Tirar um curso de Medicina não é fácil. Foram muitas as vezes em que parei e pensei que diabo estava a fazer à minha vida. Se ao olhar para trás vejo 6 anos com inúmeras semanas de "não posso" (estar com amigos e família, sair, ler, ir a concertos, ir tomar um café - porque tinha que estudar), agora olho para a frente, com o exame de acesso à especialidade no horizonte, e só vejo um "nem pensar nisso". E digo-vos, 6 anos é muito tempo na vida de uma pessoa. É muito tempo na vida dos nossos. E todos os dias peço que, quando acabar o curso, não seja tarde de mais para muita coisa. Apesar de saber que, depois,
vou falhar jantares, Natais e aniversários, vou ser a mãe que nunca está em casa, a filha que está a tratar desconhecidos quando os pais precisam dela; vou ter horas extraordinárias obrigatórias e urgências, trabalhar mais de 24h porque não há saídas de banco, vou ficar até mais tarde porque estou preocupada com o Sr X, doente da cama 7. E isto vai trazer-me, espero, muita coisa boa, vai-me fazer sentir realizada, se não conseguir salvar todas as vidas, ao menos que melhore muitas - mas também me vai tirar qualidade de vida, horas de sono e dores de cabeça.
Se quero ter emprego e uma remuneração acima do ordenado mínimo por isso? Quero. Estudei e estudo, esforcei-me e esforço-me,
porque não hei-de colher o fruto do que semeei? Porque não hei-de ambicionar ter poder económico para compensar os meus pais do esforço que fazem a sustentarem-me agora?
Há maus médicos? Há! Mas não há maus profissionais em todas as áreas? Porque não dar aos bons senão a recompensa, pelo menos o crédito pelo que fazem?
Porque é que querer trabalhar na área para a qual se estudou, com uma remuneração de acordo com as qualificações e horas de trabalho, é um direito que assiste ou deveria assistir a todos os profissionais e na classe médica é "tudo comer pela ditadura do acto médico"?